o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Buraco

O disparo do tiro foi úmido e saiu pelo outro lado. Ouviu-se um ruído fantasma eclodindo sob luzes alaranjadas. A regeneração da terra era um processo contínuo e invisível, demorado, resiliente. O eco da explosão abriu um vão inconcluso por baixo da pele do plexo solar e deixou uma cicatriz circular nas vísceras do tempo. Um buraco negro dedicado ao imemorial rastreado pela magia e conjurado por todas as células que formam as veias. Gritar de boca fechada, ou escutar o silêncio dos rodopios divinos, cores inventadas por fragmentos de sol. O abandono da paciência universal reverteu os raios pelo reflexo das direções e o buraco para dentro. Havia muitas paredes na casa de Saturno encobrindo os quartos onde ele devorava os próprios filhos. Cada passo é uma parede um muro uma construção de concreto. As pedras na montanha são tão estreitas quanto as ruas com cartas penduradas nos postes. Era vertiginosa a mirada das árvores tão embaixo, pertencendo ao solo fértil que sustentava as pedras e o carvão das palavras entalhadas. Eu seguia evitando minha evocação própria, meus caminhos abertos pela memória de um rio. Estava diante de uma bifurcação irredutível...

Perguntei à mulher de xale na rua sobre uma jornada inominável e ela esteve meditativa e receptiva. Os oráculos beberam minhas lágrimas como se fossem milagrosas e eu chorei mais e mais e mais muito forte muito recolhida, até que todos os símbolos desaguassem meus ossos abaixo e uma correnteza distribuísse novamente os pesos às coisas da matéria...

Os grãos do solo aos poucos se foram assentando para a nova seca que viria com a mudez das palavras esgotadas. A companhia de seu próprio reflexo é o inverso da realidade, os dias param de contar os encontros entre os corpos. Então, chega o reino das poeiras das cinzas, da poeira cósmica espelho do passado. Um ciclo um ciclo um ciclo um ciclo de palavras expelidas pelos poros cheios de terra marrom, os rastros dos pés mal contando sua história interrompida. Era o meu futuro recorrente, uma visão de um sonho enquanto levitava na casa das luzes melancólicas. Eram visões dos lugares enterrados, dos mistérios lentos, na umidade nutritiva. Quando acordei já tinha outros olhos e sentia outro gosto na boca, a cada vez enfrentava a casa e a constante busca pelos sinais, pelos símbolos dos arcos de luz, pelas vozes dos feitiços antigos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário