O
disparo do tiro foi úmido e saiu pelo outro lado. Ouviu-se um ruído fantasma
eclodindo sob luzes alaranjadas. A regeneração da terra era um processo
contínuo e invisível, demorado, resiliente. O eco da explosão abriu um vão
inconcluso por baixo da pele do plexo solar e deixou uma cicatriz circular nas
vísceras do tempo. Um buraco negro dedicado ao imemorial rastreado pela magia e
conjurado por todas as células que formam as veias. Gritar de boca fechada, ou
escutar o silêncio dos rodopios divinos, cores inventadas por fragmentos de
sol. O abandono da paciência universal reverteu os raios pelo reflexo das
direções e o buraco para dentro. Havia muitas paredes na casa de Saturno
encobrindo os quartos onde ele devorava os próprios filhos. Cada passo é uma
parede um muro uma construção de concreto. As pedras na montanha são tão
estreitas quanto as ruas com cartas penduradas nos postes. Era vertiginosa a
mirada das árvores tão embaixo, pertencendo ao solo fértil que sustentava as
pedras e o carvão das palavras entalhadas. Eu seguia evitando minha evocação
própria, meus caminhos abertos pela memória de um rio. Estava diante de uma
bifurcação irredutível...
Perguntei
à mulher de xale na rua sobre uma jornada inominável e ela esteve meditativa e
receptiva. Os oráculos beberam minhas lágrimas como se fossem milagrosas e eu
chorei mais e mais e mais muito forte muito recolhida, até que todos os
símbolos desaguassem meus ossos abaixo e uma correnteza distribuísse novamente
os pesos às coisas da matéria...
Os grãos do solo aos
poucos se foram assentando para a nova seca que viria com a mudez das palavras
esgotadas. A companhia de seu próprio reflexo é o inverso da realidade, os dias
param de contar os encontros entre os corpos. Então, chega o reino das poeiras
das cinzas, da poeira cósmica espelho do passado. Um ciclo um ciclo um ciclo um
ciclo de palavras expelidas pelos poros cheios de terra marrom, os rastros dos
pés mal contando sua história interrompida. Era o meu futuro recorrente, uma
visão de um sonho enquanto levitava na casa das luzes melancólicas. Eram visões
dos lugares enterrados, dos mistérios lentos, na umidade nutritiva. Quando acordei
já tinha outros olhos e sentia outro gosto na boca, a cada vez enfrentava a
casa e a constante busca pelos sinais, pelos símbolos dos arcos de luz, pelas
vozes dos feitiços antigos.
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