o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A antiga psique

O tempo parece absoluto. Às vezes, da janela, entra a sensação de um cheiro distante. Meus caminhos, pelas ruas desertas, distanciam-se das pessoas daqui, que estes passos não pertencem a meus pés. Quando tomada de um novo dia, respiro rarefeito ar, transpasso portões enferrujados e busco nos papeis antigos, escondidos em prateleiras altas, a poeira que modifica meu presente.
Neste dia, algo aconteceu. Um cruzamento de esquina tomou conta daquele segundo destrutivo, que adentrou o domínio de minhas pernas. Então, seguido do limite à branquidão, expus-me ao esquecimento deste mundo para a lembrança de um outro, pertencente ao cumprimento de meus dedos, enraizando-me em sopro de origem.

Era tarde da noite quando fui deitar-me, mais a pedidos deste forte corpo enfraquecido por violência atmosférica que de sonolência propriamente. Na verdade, não havia necessidade de sono. O que havia, em minhas vísceras, era uma estranheza diferente, que nunca havia sentido, mas que parecia natural, à maneira daquilo que acontece porque deve acontecer. Removi meus sapatos apertados, o sutiã desnecessário, e deitei-me esticada, encarando o teto, na tentativa de atentar-me aos sons de natureza que havia colocado pra tocar no aparelho fechando a esquina de meu quarto. Durante a madrugada, transitei entre alfa e vigília, dormi com um dos olhos abertos, mas permaneci imóvel, pregada ao colchão. Num específico momento – não posso dizer quando tudo começou – a pele de meu corpo esparramou-se pelos lençóis, escorreu no chão da casa, esgueirou-se por debaixo das frestas e ganhou a rua. Lá fora, já pertencida ao asfalto, notei que o tempo do mundo não mais estava preso às horas das semanas, ou aos meses do ano. Agora, tudo funcionava numa amplitude fantasmagórica, e a nitidez corpórea daqueles que passeavam pela cidade tomava força. Enquanto rastejava, eu percebia as pessoas pelo ângulo mais baixo, seus narizes farejando odores atraentes, seus queixos erguendo-se para acanhar os demais, numa tentativa de impor espaço para desenvolver a própria sobrevivência. As articulações dos corpos ao redor comportavam-se de modo esdrúxulo, virando do avesso sempre que estimuladas. E eu, assustada, mas embriagada por uma sabedoria misteriosa, não era capaz de retornar. Foi então que tomei consciência muscular, por trás do glóbulo do olho, de que não deveria retornar, mas seguir adiante. E acordei, as cinco e quarenta e dois, enrijecida, coberta de dores.
Segui atordoada pelo restante da semana. Noites como essa tornaram a repetir-se, a cada possível descanso. Atreladas à causalidade, transferiram-se para a vida acordada, e passei a enxergar com os pelos que me cobriam. Já não era capaz de encontrar-me em paz. Mesmo quando longe daqueles que me indagavam a percepção aparentemente vaga, as profundas olheiras, e o cheiro de transformação, eu sabia que, paralelamente aos monumentos que me cercavam, havia outra coisa. Mais perto de mim, grudada às minhas mãos, por trás de meus ouvidos, agregada à minha pessoa, inerente a esta passagem, dentro em minhas vísceras. Os membros amputados começaram a aparecer, e eu a sentir-lhes ausência – em mim, nos outros, nos postes, nas vias e nos domingos. Certa monstruosidade rugia. Eu não podia escapar a ela; e, para ser sincera, não parecia querer. Um senso de veracidade apoderou-se de minha alma no minuto em que soltaram os tigres. Notei que já não era tempo de conservá-los enjaulados.
Estava frio. Encontrava-me nas ruas não podia medir a quanto. O tempo deslocava-se furioso, atropelando-me os passos. As ondas de um inexistente mar arrebatavam-se. Estava frio, o vento cortava, eu seguia. No entanto, nada disso era suficiente à minha lucidez. Germinando, a caça me impulsionava. Eu sabia que estava participando de um longuíssimo nascimento. Então, agredida de uma vitalidade desmedida, corri, seguindo devir-destino, em busca do perdido, inteiramente envolvida, desde o osso, nesta missão antiga que havia me encontrado. Precisamente, ocorreu. Sei, pois jamais fui enganada por minhas lembranças. Um cruzamento de esquina tomou conta daquele segundo destrutivo, que adentrou o domínio de minhas pernas.
Adanna. Mulher. Trinta e três anos. Traumatismo cervical. Mil novecentos e noventa e seis. Cinco e quarenta e dois. As vozes brancas continuavam dizendo essas palavras. Eu estava acordada, como nas últimas semanas. Porém, havia um deslocamento irreparável de minha solidez em ruína. Não sabia se estava deitada, esticada encarando o teto, ou se conseguia me mover, rastejando por entre a selvageria. Não sabia se estava morta. Permaneci ali décadas contadas para trás, esburacada, vazia, apática e insone. A catástrofe era iminente ao apito em minha consciência, mas nada podia ser feito para que mudássemos de passado. Na escuridão, porém, pela primeira vez, da janela entrou a sensação de um cheiro distante.
Desprovida de corpo, vi fiapos de luz e cor. As ondas festejavam a epidemia, as casas moviam-se em agitação febril, e uma mulher urrava na concepção de um milagre. Notei que seus gritos saiam de minha garganta, e que seu rosto me era espelho. A atmosfera turva que me cercava urgia desespero, mas não havia a escolha de ceder. Ali, tratava-se da escolha por ambos a criação e o sacrifício. Estava quente, embora os raios anunciassem uma tempestade, pois o ar mortificante comprimia-me o fôlego. Uma forte pressão sanguínea violentava-me o coração a cada segundo. No entanto, a criança que viria dependia de minha responsabilidade por respirar. O esforço por manter o oxigênio fluindo progredia com forças extraordinárias. Ao redor, muitos eram mortos para que outros sucedessem à vida. Naquele instante, porém, apenas uma vida me interessava. E minha missão era fazê-la acontecer.
Sozinha, nascia uma criança em meio à destruição. A visão, então, de mim mesma, embaçou-se ensanguentada, e eu, estendendo o frágil e novo corpo, disse a um homem que devia estar ali: Leve-a para o barco e chame-a Olga. Com um longo suspiro de espanto, segui à consciência e eu logo soube onde me encontrava. Olga era o nome de minha mãe, e eu estava no hospital para aprender as consequências da minha história.
Logo fui exposta à liberdade. Agora, movia-me com o auxílio de rodas. Os papeis guardados tornaram-se meus companheiros, e não demorou até que eu pudesse compreender. Barbados, mil novecentos e trinta, o mundo acabava para aquela gente e começava para quem me trouxe a ele. Antes, eu não podia valorizar o trabalho dos antepassados. Agora, sentada infinitamente para observar com mais atenção, contemplo os documentos envelhecidos, que sussurram: sua importância, feito a minha, depende da importância reconhecida nos olhos dos condenados.


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