O tempo parece absoluto. Às vezes, da janela, entra a sensação de um
cheiro distante. Meus caminhos, pelas ruas desertas, distanciam-se das pessoas
daqui, que estes passos não pertencem a meus pés. Quando tomada de um novo dia,
respiro rarefeito ar, transpasso portões enferrujados e busco nos papeis
antigos, escondidos em prateleiras altas, a poeira que modifica meu presente.
Neste dia, algo aconteceu. Um cruzamento de esquina tomou conta daquele
segundo destrutivo, que adentrou o domínio de minhas pernas. Então, seguido do
limite à branquidão, expus-me ao esquecimento deste mundo para a lembrança de
um outro, pertencente ao cumprimento de meus dedos, enraizando-me em sopro de
origem.
Era tarde da noite quando fui deitar-me, mais a pedidos deste forte
corpo enfraquecido por violência atmosférica que de sonolência propriamente. Na
verdade, não havia necessidade de sono. O que havia, em minhas vísceras, era
uma estranheza diferente, que nunca havia sentido, mas que parecia natural, à
maneira daquilo que acontece porque deve acontecer. Removi meus sapatos
apertados, o sutiã desnecessário, e deitei-me esticada, encarando o teto, na
tentativa de atentar-me aos sons de natureza que havia colocado pra tocar no
aparelho fechando a esquina de meu quarto. Durante a madrugada, transitei entre
alfa e vigília, dormi com um dos olhos abertos, mas permaneci imóvel, pregada
ao colchão. Num específico momento – não posso dizer quando tudo começou – a
pele de meu corpo esparramou-se pelos lençóis, escorreu no chão da casa, esgueirou-se
por debaixo das frestas e ganhou a rua. Lá fora, já pertencida ao asfalto, notei
que o tempo do mundo não mais estava preso às horas das semanas, ou aos meses
do ano. Agora, tudo funcionava numa amplitude fantasmagórica, e a nitidez
corpórea daqueles que passeavam pela cidade tomava força. Enquanto rastejava, eu
percebia as pessoas pelo ângulo mais baixo, seus narizes farejando odores
atraentes, seus queixos erguendo-se para acanhar os demais, numa tentativa de
impor espaço para desenvolver a própria sobrevivência. As articulações dos
corpos ao redor comportavam-se de modo esdrúxulo, virando do avesso sempre que
estimuladas. E eu, assustada, mas embriagada por uma sabedoria misteriosa, não
era capaz de retornar. Foi então que tomei consciência muscular, por trás do
glóbulo do olho, de que não deveria retornar, mas seguir adiante. E acordei, as
cinco e quarenta e dois, enrijecida, coberta de dores.
Segui atordoada pelo restante da semana. Noites como essa tornaram a
repetir-se, a cada possível descanso. Atreladas à causalidade, transferiram-se
para a vida acordada, e passei a enxergar com os pelos que me cobriam. Já não
era capaz de encontrar-me em paz. Mesmo quando longe daqueles que me indagavam
a percepção aparentemente vaga, as profundas olheiras, e o cheiro de
transformação, eu sabia que, paralelamente aos monumentos que me cercavam,
havia outra coisa. Mais perto de mim, grudada às minhas mãos, por trás de meus
ouvidos, agregada à minha pessoa, inerente a esta passagem, dentro em minhas
vísceras. Os membros amputados começaram a aparecer, e eu a sentir-lhes
ausência – em mim, nos outros, nos postes, nas vias e nos domingos. Certa
monstruosidade rugia. Eu não podia escapar a ela; e, para ser sincera, não
parecia querer. Um senso de veracidade apoderou-se de minha alma no minuto em
que soltaram os tigres. Notei que já não era tempo de conservá-los enjaulados.
Estava frio. Encontrava-me nas ruas não podia medir a quanto. O tempo
deslocava-se furioso, atropelando-me os passos. As ondas de um inexistente mar arrebatavam-se.
Estava frio, o vento cortava, eu seguia. No entanto, nada disso era suficiente
à minha lucidez. Germinando, a caça me impulsionava. Eu sabia que estava
participando de um longuíssimo nascimento. Então, agredida de uma vitalidade
desmedida, corri, seguindo devir-destino, em busca do perdido, inteiramente
envolvida, desde o osso, nesta missão antiga que havia me encontrado. Precisamente,
ocorreu. Sei, pois jamais fui enganada por minhas lembranças. Um cruzamento de
esquina tomou conta daquele segundo destrutivo, que adentrou o domínio de
minhas pernas.
Adanna. Mulher. Trinta e três anos. Traumatismo cervical. Mil
novecentos e noventa e seis. Cinco e quarenta e dois. As vozes brancas
continuavam dizendo essas palavras. Eu estava acordada, como nas últimas
semanas. Porém, havia um deslocamento irreparável de minha solidez em ruína.
Não sabia se estava deitada, esticada encarando o teto, ou se conseguia me
mover, rastejando por entre a selvageria. Não sabia se estava morta. Permaneci
ali décadas contadas para trás, esburacada, vazia, apática e insone. A
catástrofe era iminente ao apito em minha consciência, mas nada podia ser feito
para que mudássemos de passado. Na escuridão, porém, pela primeira vez, da
janela entrou a sensação de um cheiro distante.
Desprovida de corpo, vi fiapos de luz e cor. As ondas festejavam a
epidemia, as casas moviam-se em agitação febril, e uma mulher urrava na
concepção de um milagre. Notei que seus gritos saiam de minha garganta, e que
seu rosto me era espelho. A atmosfera turva que me cercava urgia desespero, mas
não havia a escolha de ceder. Ali, tratava-se da escolha por ambos a criação e
o sacrifício. Estava quente, embora os raios anunciassem uma tempestade, pois o
ar mortificante comprimia-me o fôlego. Uma forte pressão sanguínea violentava-me
o coração a cada segundo. No entanto, a criança que viria dependia de minha
responsabilidade por respirar. O esforço por manter o oxigênio fluindo
progredia com forças extraordinárias. Ao redor, muitos eram mortos para que
outros sucedessem à vida. Naquele instante, porém, apenas uma vida me
interessava. E minha missão era fazê-la acontecer.
Sozinha, nascia uma criança em meio à destruição. A visão, então, de
mim mesma, embaçou-se ensanguentada, e eu, estendendo o frágil e novo corpo,
disse a um homem que devia estar ali: Leve-a para o barco e chame-a Olga. Com
um longo suspiro de espanto, segui à consciência e eu logo soube onde me
encontrava. Olga era o nome de minha mãe, e eu estava no hospital para aprender
as consequências da minha história.
Logo fui exposta à liberdade. Agora, movia-me com o auxílio de rodas.
Os papeis guardados tornaram-se meus companheiros, e não demorou até que eu
pudesse compreender. Barbados, mil novecentos e trinta, o mundo acabava para
aquela gente e começava para quem me trouxe a ele. Antes, eu não podia
valorizar o trabalho dos antepassados. Agora, sentada infinitamente para
observar com mais atenção, contemplo os documentos envelhecidos, que sussurram:
sua importância, feito a minha, depende da importância reconhecida nos olhos
dos condenados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário