o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Miguel (versão final)

O asfalto era rígido feito rochas antigas, aos poucos deterioradas pelas águas. As lágrimas de Miguel colidiam com a pista e refletiam o laranja-molhado das luzes melancólicas. Chovia, os carros atravessavam a rua na iminência de derrapar, e as pessoas desabrigadas escondiam-se no quente de bares e cafés. Algumas, entretanto, aproveitavam a textura de suas peles para enlamear-se ou correr até o outro lado com a desculpa de um destino. A inconveniência aparente da chuva provocava sorrisos nervosos naqueles que se permitiam molhar. E Miguel, sentado encolhido por dor que não a frieza dos pingos, acompanhava a densidade do gotejar, como se seus olhos projetassem o céu anuviado. Sons de água e gente e motor acompanhavam a passagem dos minutos. E parecia que o tempo era só uma extensão sem fim da mesmíssima coisa: a rua e o movimento do mundo por entre seus limites.
Miguel sentou-se no meio da rua e começou a chorar. O imenso desconsolo das mãos que lhe cabiam expunha seus fantasmas para fora, e a cada nova maré seus olhos tornavam-se cinzas. A fuligem de seu corpo negligente atordoava o restante dos seres que ali viviam e compartilhavam, em presença, a rua que ele atravessava, parado pelas pernas e acuado pelo chão. À medida que soluçava, o silêncio dentro dele crescia vacuolar. A coluna enrolada movimentava o sangue dele para dentro da terra, ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o caminho dos fugitivos.
Miguel sentiu-se obrigado a abandonar o amor. A morte de Billy ocasionara naquele denso e conhecido, mas sempre unicamente doloroso processo de luto. Miguel não compreendia partidas e não compactuava com ausências. Naquele dia, Billy deitou-se cedo pela manhã debaixo da carreta de papai. E ficou. De longe, Miguel e os outros ouviam pesados suspiros finais. Ninguém teve coragem de se aproximar para ver de perto. Silenciosos, respeitaram os últimos segundos. E então Billy tornou-se a imagem de um corpo estático, que um dia foi. A terra abraçou o frágil tronco e patas marrons para devolver a matéria à sua origem. E algo se transformou, por toda a extensão do Universo. Miguel saiu de olhos catatônicos e passos mancos. Ganhou a rua logo, no instante que encobriu as próximas horas. E os outros o deixaram ir. Então, todo o movimento do mundo também deixou-o. Os carros e cores pessoas zumbidos e olhares, tudo era perdido. A verdade era crua, e doía de encostar a pele. Cada homem que passava desconhecia o iminente abandono. E não havia nada mais absurdo que a falta diante à presença. Miguel sentou-se no meio da rua e começou a chorar
Bem, ele podia ser jovem, mas não era tolo. Era, também, antigo. Seus pequenos pés compreendiam o peso do pisar entre a lentidão do múltiplo crescimento, pois que dedicavam, ao chão, vontade, disposição, e força. E a desolação que sentia era na transformação incessante de toda a verdade, no perceber o abandono iminente, fatídico, ao amor confiado numa outra pessoa - a desolação que vivia era no perceber, ao iminente, abandono, fundo, o amor confiado em ato de colecionar ossos, para então cantar sobre eles. Miguel não precisava erguer os olhos para notar o movimento triste dos homens, entre destruição, ordem e desordem, deslocamento de percepção; dos homens esvaziados e confusos, desconfiando à própria perdição e esquecendo-se da selvageria para instalar-se em constante fuga à inevitável troca entre o céu e o buraco.
Miguel sentou-se no centro do chão e começou a chorar. À medida que seus olhos acinzentavam-se pela sina da gravidade, a fuligem de seu corpo expandia-se em explosão, trans-borda, toque avesso descaminho furioso, atingindo a todos aqueles que com ele compartilhavam presença, na rua, acuados pelo caos. Quando soluçava, berrando sobre o solo, o silêncio dentro dele crescia, reverberando terra, acolhendo Discórdia. A coluna enrolada movimentava o sangue dele para dentro, e atravessava, desde o entre, até a Lua, ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o murmúrio dos fugitivos.
A mancha verde-musgo na parede do quarto de Miguel era a única certeza de pele que o atraia segurar. Todos os vultos lá, gritando vértebras e intestinos, sussurrando segredos, acolhiam a mancha real na casa dele, que ocupava o centro da consciência, para além de ventigens e ondas turbulentas. E a beleza desta rua soturna morava no cheiro de sua mãe. Acompanhando o chão desconfigurado, Miguel sufocava o choro com o antebraço direito, aspirando compulsivamente em busca de origens, algo da ancestralidade maternal presente em suas memórias e nos pelos dos braços humanos, em esquinas ocultas e na textura dos animais.
Entregue ao avesso do mundo oficial, lançou-se em meio ao asfalto, de encontro à terra, desafiando a plenitude de seus ossos. Eis que, no segundo sucedido de inteira vida, o acontecimento encerrou aquele instante em história, na asa de reluzente borboleta voando por entre os carros da rua.

Miguel sentou-se no meio da rua e começou a chorar. As gentes perpassavam o encolhimento de seu corpo por debaixo aos braços e pernas. Não era de surpreender que Billy tivesse morrido. A morte costuma derrubar corpos, ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o caminho dos fugitivos. Para além da chuva que caía, não importava aos homens que passavam coisa alguma, e Miguel percebia, ao sentir a lembrança do cheiro de sua mãe, tamanho desamor pertencente à rua, desvio entre o céu e o buraco. À medida que soluçava, o silêncio dentro dele crescia vacuolar. Bem, ele podia ser jovem, mas não era tolo. Seus pequenos pés compreendiam o peso do pisar entre a lentidão do múltiplo crescimento. E a desolação que sentia era na transformação incessante de toda a verdade, no perceber o iminente abandono.

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