O asfalto era
rígido feito rochas antigas, aos poucos deterioradas pelas águas. As lágrimas
de Miguel colidiam com a pista e refletiam o laranja-molhado das luzes
melancólicas. Chovia, os carros atravessavam a rua na iminência de derrapar, e
as pessoas desabrigadas escondiam-se no quente de bares e cafés. Algumas,
entretanto, aproveitavam a textura de suas peles para enlamear-se ou correr até
o outro lado com a desculpa de um destino. A inconveniência aparente da chuva
provocava sorrisos nervosos naqueles que se permitiam molhar. E Miguel, sentado
encolhido por dor que não a frieza dos pingos, acompanhava a densidade do
gotejar, como se seus olhos projetassem o céu anuviado. Sons de água e gente e
motor acompanhavam a passagem dos minutos. E parecia que o tempo era só uma
extensão sem fim da mesmíssima coisa: a rua e o movimento do mundo por entre
seus limites.
Miguel
sentou-se no meio da rua e começou a chorar. O imenso desconsolo das mãos que
lhe cabiam expunha seus fantasmas para fora, e a cada nova maré seus olhos
tornavam-se cinzas. A fuligem de seu corpo negligente atordoava o restante dos
seres que ali viviam e compartilhavam, em presença, a rua que ele atravessava,
parado pelas pernas e acuado pelo chão. À medida que soluçava, o silêncio
dentro dele crescia vacuolar. A coluna enrolada movimentava o sangue dele para
dentro da terra, ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o
caminho dos fugitivos.
Miguel
sentiu-se obrigado a abandonar o amor. A morte de Billy ocasionara naquele denso
e conhecido, mas sempre unicamente doloroso processo de luto. Miguel não
compreendia partidas e não compactuava com ausências. Naquele dia, Billy
deitou-se cedo pela manhã debaixo da carreta de papai. E ficou. De longe,
Miguel e os outros ouviam pesados suspiros finais. Ninguém teve coragem de se
aproximar para ver de perto. Silenciosos, respeitaram os últimos segundos. E
então Billy tornou-se a imagem de um corpo estático, que um dia foi. A terra
abraçou o frágil tronco e patas marrons para devolver a matéria à sua origem. E
algo se transformou, por toda a extensão do Universo. Miguel saiu de olhos
catatônicos e passos mancos. Ganhou a rua logo, no instante que encobriu as
próximas horas. E os outros o deixaram ir. Então, todo o movimento do mundo também
deixou-o. Os carros e cores pessoas zumbidos e olhares, tudo era perdido. A
verdade era crua, e doía de encostar a pele. Cada homem que passava desconhecia
o iminente abandono. E não havia nada mais absurdo que a falta diante à
presença. Miguel sentou-se no meio da rua e começou a chorar
Bem, ele podia
ser jovem, mas não era tolo. Era, também, antigo. Seus pequenos pés
compreendiam o peso do pisar entre a lentidão do múltiplo crescimento, pois que
dedicavam, ao chão, vontade, disposição, e força. E a desolação que sentia era
na transformação incessante de toda a verdade, no perceber o abandono iminente,
fatídico, ao amor confiado numa outra pessoa - a desolação que vivia era no
perceber, ao iminente, abandono, fundo, o amor confiado em ato de colecionar
ossos, para então cantar sobre eles. Miguel não precisava erguer os olhos para
notar o movimento triste dos homens, entre destruição, ordem e desordem,
deslocamento de percepção; dos homens esvaziados e confusos, desconfiando à
própria perdição e esquecendo-se da selvageria para instalar-se em constante
fuga à inevitável troca entre o céu e o buraco.
Miguel
sentou-se no centro do chão e começou a chorar. À medida que seus olhos
acinzentavam-se pela sina da gravidade, a fuligem de seu corpo expandia-se em
explosão, trans-borda, toque avesso descaminho furioso, atingindo a todos
aqueles que com ele compartilhavam presença, na rua, acuados pelo caos. Quando
soluçava, berrando sobre o solo, o silêncio dentro dele crescia, reverberando
terra, acolhendo Discórdia. A coluna enrolada movimentava o sangue dele para
dentro, e atravessava, desde o entre, até a Lua, ignorando a solidez
desenvolvida pelo asfalto para contornar o murmúrio dos fugitivos.
A mancha
verde-musgo na parede do quarto de Miguel era a única certeza de pele que o
atraia segurar. Todos os vultos lá, gritando vértebras e intestinos,
sussurrando segredos, acolhiam a mancha real na casa dele, que ocupava o centro
da consciência, para além de ventigens e ondas turbulentas. E a beleza desta
rua soturna morava no cheiro de sua mãe. Acompanhando o chão desconfigurado,
Miguel sufocava o choro com o antebraço direito, aspirando compulsivamente em
busca de origens, algo da ancestralidade maternal presente em suas memórias e
nos pelos dos braços humanos, em esquinas ocultas e na textura dos animais.
Entregue ao
avesso do mundo oficial, lançou-se em meio ao asfalto, de encontro à terra, desafiando
a plenitude de seus ossos. Eis que, no segundo sucedido de inteira vida, o
acontecimento encerrou aquele instante em história, na asa de reluzente
borboleta voando por entre os carros da rua.
Miguel
sentou-se no meio da rua e começou a chorar. As gentes perpassavam o
encolhimento de seu corpo por debaixo aos braços e pernas. Não era de
surpreender que Billy tivesse morrido. A morte costuma derrubar corpos,
ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o caminho dos
fugitivos. Para além da chuva que caía, não importava aos homens que passavam
coisa alguma, e Miguel percebia, ao sentir a lembrança do cheiro de sua mãe,
tamanho desamor pertencente à rua, desvio entre o céu e o buraco. À medida que
soluçava, o silêncio dentro dele crescia vacuolar. Bem, ele podia ser jovem,
mas não era tolo. Seus pequenos pés compreendiam o peso do pisar entre a
lentidão do múltiplo crescimento. E a desolação que sentia era na transformação
incessante de toda a verdade, no perceber o iminente abandono.
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