o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Miguel

Miguel sentou-se no meio da rua e começou a chorar. O imenso desconsolo das mãos que lhe cabiam expunha seus fantasmas para fora, e a cada nova maré seus olhos tornavam-se cinzas. A fuligem de seu corpo negligente atordoava o restante dos seres que ali viviam e compartilhavam, em presença, a rua que ele atravessava, parado pelas pernas e acuado pelo chão. À medida que soluçava, a berros, o silêncio dentro dele crescia vacuolar. A coluna enrolada movimentava o sangue dele para dentro da terra, ignorando a solidez desenvolvida pelo asfalto para contornar o caminho dos fugitivos.

Bem, ele podia ser jovem, mas não era tolo. Seus pequenos pés compreendiam o peso do pisar entre a lentidão do múltiplo crescimento. E a desolação que sentia era na transformação incessante de toda a verdade, no perceber o abandono iminente, fatídico, ao amor confiado numa outra pessoa. Miguel não precisava erguer os olhos para notar o movimento triste dos homens, esvaziados e confusos, desconfiando à própria perdição, inevitável a cada troca de ares entre o céu e o buraco.

A mancha verde-musgo na parede do quarto de Miguel era a única certeza de pele que o atraia segurar. Todos os vultos lá, gritando vértebras e intestinos, contornavam a mancha real na casa dele, que ocupava o centro da consciência, para além de saculejos e ondas turbulentas. E a beleza desta rua soturna morava no antigo perfume de sua mãe. Acompanhando a mancha na parede da casa, Miguel sufocava o choro com o antebraço direito, aspirando compulsivamente em busca de origens, algo da ancestralidade maternal presente em suas memórias e nos pelos dos braços humanos. Entregue ao avesso do mundo oficial, lançou-se em meio ao asfalto, desafiando a plenitude de seus ossos. Eis que, no segundo sucedido de inteira vida, o acontecimento encerrou aquele instante em história, na asa de reluzente borboleta voando por entre os carros da rua. 

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