o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Meu tapete mágico é existir

Hoje o sol ainda não nasceu. Estava, de certo, com preguiça, resolveu ficar mais um pouco na cama. Suas manifestações sutis – um espirro, movimento de dedão do pé ou suspiro forte, como de motor rangendo – lambiam as pontas dos fios de cabelo das pequenas criaturas que se movimentavam lá longe, por debaixo das nuvens. Os corpos finos doavam-se para a atmosfera do mundo; explodiam em faíscas mudas. Ao mesmo tempo, uma árvore balançava voluntária ao sopro do ar.
Avistei um menino caminhando com a cabeça nos pés. Era um menino com braços, pernas, olhos e montes de vísceras por dentro. Ele encarava no céu a condição de chão, estupefato com todo aquele azul. Parou, ainda de cabeça erguida, e sentou-se na solidez da terra, com receio de que ela resolvesse comê-lo no jantar e o sugasse para dentro a qualquer segundo. Isto não me parece nem um pouco redondo, pensou, com as palmas sobre a grama. Uma moça passou por nós arfando, puxada por um sério cão em sua coleira. Conheço um doido que vive andando a pedir cigarros, disse o menino a uma célebre minhoca que nos espectava. Aposto que ele também fica com medo da fome que a terra tem. E aposto ainda que só ele nota como todo mundo gira uma rodinha numa cápsula reluzente ao invés de prostrar seus passos ao caminho. Então o menino calou-se para deixar o silêncio em paz. Eu e ele vimos um passarinho cruzar a rua, rompendo a gravidade. Deve ser porque a terra não gosta de comer passarinho. E se ela também não gostasse de comer tapete?
Com um fugaz sorriso de entendimento, o menino ergueu-se e pôs-se a flutuar em outra direção, para onde o vento chamava. O cheiro de pastel assado vindo da esquina e o ônibus estacionando ao momento em que a música de meus ouvidos cresceu me fizeram perceber o quanto de verdade há nos pontos em conexão. Afinal, eu havia nascido e estava ali para ver o menino borboletear em sumiço e tatear o verde em arbustos espinhosos. As histórias funcionam assim, num emaranhado de continuidade e descontinuidade, como o coser de tapetes mágicos. Uma série de fitas coloridas em transparência despojou-se a minha frente, enfeitando a despedida do menino-ilusão, no que sumi para dentro de mim mesma, sabendo que dentro é espaço de transformar sensação em história e história em sensação.

Um comentário:

  1. Ficou completamente onírico. um bocado íntima das palavras pra conseguir criar uma atmosfera tão bem (: flutuei

    ResponderExcluir