o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Navio

Duzentos dias no barco. Nesses tempos, arrastei minha âncora pelo alto-mar que perdurava em todas as direções e desconfigurava os limites quando o sol movia cada milímetro na expectativa de chegar ao outro lado, por detrás à imensa aguidão, adormecendo o calor e despertando as criaturas vicejantes do imaginário, os monstros cujos olhos estupram o medo. As bravias águas continuaram existindo amplo, para destruir os vestígios do tempo, espaçando-o entre afogamentos e respostas a cartas que não eram para mim. Abandonei a terra sobre o lugar anterior para subverter este território que não cabe o meu corpo. Passaram-se todos os dias necessários entre a tempestade e o silêncio do que renega a coragem, dada à imensidão inconsolável frente à pequenez dos membros e das mentiras. A água esmagadora repetia a constância do infinito e minha invisibilidade, de corpo livre. Fui visitada por anjos espelhados no céu, que colidia com o horizonte para liquefazer-me parte indispensável, nos dias em que pude pacificamente derreter os sonhos da noite em balouçante consciência. Ao navegante que sobrevive, porém, há inevitável aparição das desconhecidas terras, que arrancam a esta inundação. O naufrágio não durou mais que duzentos dias, desde que saí sozinha e queimei aquilo que ficou. Avistando, ao longe, respirares descompassados, doses cavalares de palavra, cores além-azul e chuva, percebo-me deixando o deserto à medida que se aproximam, agitando as mãos antes do fôlego, despedindo-me do mar todo por dentro para penetrar novamente o subterrâneo, quando meus pés o tocarem. O horror do último suspiro para que o ar divida-se em milhares de respirações assombra-me, que me encaro neste limiar reflexo do infinito, há duzentos dias, para lembrar-me novamente. A abundância da terra envolve seus desperdícios, e a pouca atenção não vale para quem deseja se perder. O instante inteiro é o mar, e a terra é feita de caminhos. Lá, precisarei escrever de novo a outros ninguéns e suportar o peso do desdizer. É de destino pisar no chão e estranhar o pé que afunda devagar. Adeus casa flutuante, estômago do mundo, a terra que chega está me pedindo para descer à superfície. Assim que a chuva cair, no primeiro dia, profetiza-se que o barco colidirá com o concreto, à falsa segurança, para que eu encoste o rosto ao chão, de novo, e ouça, nos passos e mudanças, o coração que bate desde o centro do peito, o magma por debaixo do solo, as palavras em gestação, por dizer, vulcanizadas de um jeito ou de outro, para compreender, naquele ato, a importância do que vou encontrar. 

Um comentário:

  1. francis musa. ai que saudade!
    "á, precisarei escrever de novo a outros ninguéns e suportar o peso do desdizer. É de destino pisar no chão e estranhar o pé que afunda devagar"

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