o movimento do entre pelo tempo e pelo espaço, onde cada palavra é figura esburacada, e o rosto de ninguém expande ao infinito.

segunda-feira, 24 de março de 2014

arruinando

estávamos deitados ao cair da noite, embalados por sono mal aproveitado e entregues ao conforto desta cama velha, as histórias ao redor, em livros, pequenos objetos vivos, fotografias e alguns discos que eu não tenho o hábito de ouvir. você respirava fundo e eu não conseguia tranquilizar-me comigo para abrir o vão, criar coisa nova com cheiro de antiga, passar tempo na conhecida cidade espaçada em outro lugar, espalhado pelo corpo. quando afastei necessidades tolas e projetos fracassados, o instante vazio, pretendendo um sonho, foi preenchido pela vontade secreta das memórias. lembrei-me daquele sofá numa configuração outra, luz amarelada, a jovem madrugada convidativa, inúmeras xícaras de café, e pude sentir o cansaço enganando meu sangue que corria, como se antes não fosse tempo longínquo, rosto amado, distância inevitável dos instantes. mas eu havia escolhido, no desconsolo de jamais esperar por dizer o que me saltava aos olhos, meditar o momento agora, que estava acontecendo. todos os braços carinhosos fazem ausência quando só existe retornar a esta casa de mentiras. foi aí que, na tentativa de acompanhar sua respiração, bem de perto, a sensação familiar de toque-entre-vidas, a pequena deitada sutilmente sobre meus pés para abençoar o caminho com a sabedoria da lua, eis a erupção dos traços, matéria das palavras. eu não queria me mexer para aprender com a passagem. então, foi-me saindo pelas costas uma memória vermelha e fluida, com jeito de gente e um sorriso que eu sempre conhecia. ela deitou-se no espaço vazio da cama e, ao meu breve desespero por tocá-la, virou fantasma, atravessável, que me encarava, e foi sumindo... sem saber como suportar o resto da vida, abri os olhos para ver o vago próximo acontecimento, que nunca chegaria, que promete a continuidade para compreender qualquer importância desalegre, em presença, de dentro de mim. 

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